A nova realidade do trabalho no Brasil e no mundo

O 1º de maio é um dia de reflexão e luta dos trabalhadores no mundo todo. Mais do que um feriado, é uma data para lembrar a história e pensar o futuro da atividade que organiza a vida social. No Brasil, a data foi oficializada em setembro de 1925 e desde então, mesmo com as evoluções e atualizações de direitos e deveres, o dia é marcado por protestos e reivindicações. O Multiverso te convida a refletir sobre a relação entre o emprego e os trabalhadores no Brasil, a classe patronal e os rumos do movimento sindical.
“Todo o Homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social”, garante a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Hoje, o país vive um momento de profunda transformação no mercado e na legislação trabalhista. Para regular, dar diretrizes e alinhar vontades, direitos e deveres, tanto do empregado quanto do empregador, a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) surgiu em 1943 para implementar novas regras e conceitos. Tal ordenamento foi criado nos anos finais do então Estado Novo, Governo de Getúlio Vargas (1930-1945).

Diversas foram as mudanças que ocorreram nesta legislação desde a criação. Pode-se dizer que nenhuma delas foi tão profunda e tão controversa como a ocorrida em 2017, a Reforma Trabalhista. As mudanças fazem pensar em como se adaptar a novas realidades econômicas e estruturais do emprego.

Para entender os processos de mudança, o papel dos trabalhadores, das empresas e dos sindicatos, o Multiverso conversou com a economista Lúcia Garcia, coordenadora nacional do Departamento Intersindical de Estudos Socioeconômicos (DIEESE).
Multiverso: A data do 1º de maio foi criada em 1889, em Paris, na França, em homenagem a trabalhadores norte-americanos que lutaram por melhores condições nas fábricas em que atuavam. O manifesto realizado nos Estados Unidos resultou em violências, prisões e mortes. O ato de rebeldia por parte desses trabalhadores teve como motivo a exposição a situações extremamente precárias de serviços, extensas jornadas de trabalho e baixíssimos salários. Algumas situações ainda se repetem até hoje. Quais as perspectivas para o mundo do trabalho?
Lúcia Garcia: Estamos vivenciando um momento de grandes transformações em relação à estrutura produtiva e à maneira como o trabalho se insere nessa perspectiva. Sabemos que, em todas as formas de organização humana, o trabalho foi fundamental para o homem e para a humanidade obter aquilo que é necessário. Foi ou ainda é a forma sustentada no trabalho que se distribui a riqueza produzida.
Mas, em um processo mais recente, com o advento do capitalismo, tem-se um mercado de trabalho como estrutura social reguladora de como se produz e de como se divide a produção. Hoje, o que está em crise na humanidade é o próprio capitalismo, a maneira como o ele produz. Por isso, a forma assalariada, que é a forma advinda dessa estrutura de mercado de trabalho, também, está em crise.
Resumindo: o trabalho continua e vai continuar. Porque sem ele, a humanidade seria inviável. Mas, o assalariamento com todos os seus acessórios está em crise no mundo inteiro. Está em crise entre os trabalhadores do Brasil, da América Latina, da Europa e da América do Norte.
Multiverso: Então, o assalariamento está em crise?
Lúcia Garcia: Sim. O assalariamento é uma subordinação em que o trabalhador coloca o tempo dele à disposição de outros que vão gerir e organizar a produção, durante um determinado período. O fato do trabalhador entregar o seu tempo representa uma entrega assimétrica, onde o ele tem menor poder que o comprador, que é o patrão, o empresário. Ele é protegido por uma legislação trabalhista. Neste momento, nós estamos com uma crise no assalariamento e com uma crise na legislação que protege o assalariamento. Por isso, se diz que estamos em um momento de desvalorização da sociedade salarial.
Multiverso: Avançamos ou estamos em processo de desmanche e recuo?
Lúcia Garcia: Nós estamos em um processo de desvalorização da sociedade organizada sobre o assalariamento e sobre as relações salariais. Esse processo de desintegração do assalariamento vai gerar vítimas. Vamos ter, para os trabalhadores, uma grande perda, porque as nossas gerações nasceram com a perspectiva do vínculo assalariado. Quando isso se desmancha, se desintegra, entra em uma desordem. Nós que não temos o plano B, vamos sofrer com isso.
Agora, esse recuo quer dizer que é o fim da história, fim dos tempos, que vamos ter suicídios em massa? Não. O que vai acontecer é que vamos perder muito até apreendermos a nos reorganizar para ter outra forma de trabalho, outras formas de ter a nossa organização social sendo construída. É um momento de grande transformação e de perdas imediatas. Se não pararmos para pensar em como a sociedade possa se organizar fora do assalariamento, isso sim é o grande dano. Nós temos que parar e refletir.
Multiverso: A insegurança jurídica contribui para o mau desempenho do mercado?
Lúcia Garcia: Nós estamos ultrapassando um momento em que várias legislações protetivas do trabalho, que tem a função de orientar empregadores e assalariados, entraram em colapso no mundo inteiro. Elas estão sendo substituídas por outras legislações que, via de regra, estão reduzindo direitos dos trabalhadores. Essas legislações estão sendo impostas de maneira muito antidemocrática. Poderíamos dizer que está sendo feito ‘goela abaixo’. Isso aconteceu na Espanha, no México e no Brasil de maneira bastante exemplar.
Multiverso: Sendo desta forma, será que ela se mantém?
Lúcia Garcia: Se ela para em pé, ela nos dá uma segurança jurídica. Mas, se ela não para em pé, isso não acontece. A grande questão da nova legislação trabalhista no Brasil é que ela não traz segurança jurídica, porque ela é ilegítima. Ela foi mal discutida e não tem a participação dos trabalhadores. Então, isso nos traz um ambiente em que o empresário prefere não contratar a contratar e ter mais uma ação trabalhista. Logo, devemos seguir aquele velho conselho: uni-vos. Os trabalhadores unidos têm condições de virar esse jogo. Os trabalhadores fragmentados não têm condição para isso, cada um vai sofrer num cantinho. Se nós continuarmos desunidos, vamos sofrer. Se nos unirmos, vamos meter medo.
Multiverso: Se houver mobilização, ainda teremos a ideia de emprego e proteção social que sempre pautou a luta dos trabalhadores?
Lúcia Garcia: A ideia do emprego está se inviabilizando ou se colocando pelo menos como uma das formas de organização do trabalho. Quando a gente diz que a sociedade salarial está sendo desmobilizada ou atacada, estamos falando que o emprego está perdendo seu tamanho clássico para ficar menor. Precisamos e devemos ter várias outras formas de organização do trabalho que convivam com o emprego. A ideia de uma luta pela proteção do trabalho e não só do emprego tem que se colocar para a organização sindical.
Multiverso: O movimento sindical vai se transformar?
Lúcia Garcia: O movimento sindical tem uma tarefa histórica de se transformar. Se ele não se transformar, vai desaparecer e vai surgir um novo movimento sindical, porque os grupos de interesse do trabalho vão continuar existindo. O movimento sindical hoje, enfrenta uma crise de representatividade. E, existe uma lógica para essa crise. O movimento sindical se pautou pela existência do emprego, que está em crise, logo, o movimento sindical vai entrar em crise junto com o emprego. Se o movimento sindical for entendido como movimento da classe trabalhadora, vai surgir uma reflexão sobre quem é a classe trabalhadora hoje. Por isso que nós, estudiosos do trabalho, falamos de uma classe trabalhadora estendida.
Multiverso: Quem é essa classe trabalhadora estendida?
Lúcia Garcia: Por exemplo, um sujeito que abre uma champanharia na Calçada da Fama. Quando você conversar com ele, ele vai dizer: “ah, eu sou empresário”. Só que este empresário trabalha 57 horas semanais, tem no máximo um ajudante na champanharia, tem que garantir mercado, buscar capital de giro, se organizar de uma forma em que ele mais parece um pequeno comerciante do que um empresário. Ele não sabe, mas ele é classe trabalhadora estendida. Assim como o dono da mecânica, uma pessoa que venda sucos naturais numa barraca ou em um food truck.
Multiverso: E, porque são classes trabalhadoras estendidas?
Lúcia Garcia: Quando o capitalismo entra em crise, o trabalhador entra em crise junto. Então, ele parece ser trabalhador. Ele chega e diz: “eu sou empresário, eu faço parte da classe média”. Esse pensamento não é mais do que ideologia para que ele tape os olhos e não enxergue quem ou o que ele é no mundo. Então, o movimento sindical precisa estender a sua visão para essas formas de trabalho, onde a dinâmica de trabalho é norteada por outros.
Os trabalhadores americanos e os sindicatos americanos já se deram conta de tal questão, por isso, nos EUA, os sindicatos não representam só os empregados, mas procuram organizar as associações de produção correlatas, ou seja, aquele ramo produtivo. O movimento sindical precisa olhar para isso, porque senão ele vai continuar gritando na rua para trabalhadores que não se identificam com ele.
Escrito por Bruno Dornelles em 01 Maio 2018.